JAPÃO
Quando
voltei ao Brasil, depois de residir doze anos no Japão, me incumbi da difícil
missão de transmitir o que mais me impressionou do povo Japonês: kokoro.
Kokoro ou Shin significa coração-mente-essência.
Como
educar pessoas a ter sensibilidade suficiente para sair de si mesmas, de suas
necessidades pessoais e se colocar à serviço e disposição do grupo, das outras
pessoas, da natureza ilimitada?
Outra
palavra é gaman: aguentar, suportar.
Educação para ser capaz de
suportar dificuldades e superá-las.
Assim,
a tragédia de 11 de março, no Nordeste japonês, surpreendeu o mundo de duas maneiras.
A
primeira pela violência do tsunami e dos vários terremotos, bem como dos
perigos de radiação das usinas nucleares de Fukushima.
A
segunda pela disciplina, ordem, dignidade, paciência, honra e respeito de todas
as vítimas.
Filas
de pessoas passando baldes cheios e vazios, de uma piscina para os banheiros.
Nos
abrigos, a surpresa dos repórteres norte americanos: ninguém queria tirar
vantagem sobre ninguém. Compartilhavam
cobertas, alimentos, dores, saudades, preocupações, massagens. Cada qual se
mantinha em sua área. As crianças não
faziam algazarra, não corriam e gritavam, mas se mantinham no espaço que a família
havia reservado.
Não
furaram as filas para assistência médica
- quantas pessoas necessitando de remédios perdidos - mas esperaram sua vez
também para receber água, usar o telefone, receber atenção médica, alimentos, roupas e escalda pés singelos, com
pouquíssima água.
Compartilharam
também do resfriado, da falta de água para higiene pessoal e coletiva, da fome,
da tristeza, da dor, das perdas de verduras, leite, da morte.
Nos
supermercados lotados e esvaziados de alimentos, não houve saques. Houve a resignação da tragédia e o
agradecimento pelo pouco que recebiam.
Ensinamento de Buda, hoje enraizado na cultura e chamado de kansha no
kokoro: coração de gratidão.
Sumimasen
é outra palavra chave. Desculpe, sinto
muito, com licença. Por vezes me parecia que as pessoas pediam desculpas por
viver. Desculpe causar preocupação,
desculpe incomodar, desculpe precisar falar com você, ou tocar à sua
porta. Desculpe pela minha dor, pelo
minhas lágrimas, pela minha passagem, pela preocupação que estamos causando ao
mundo. Sumimasem.
Quando
temos humildade e respeito pensamos nos outros, nos seus sentimentos,
necessidades. Quando cuidamos da vida como um todo, somos cuidadas e
respeitadas.
O
inverso não é verdadeiro: se pensar primeiro em mim e só cuidar de mim,
perderei. Cada um de nós é o todo
manifesto.
Acompanhando
as transmissões na TV e na Internet pude pressentir a atenção e cuidado com
quem estaria assistindo: mostrar a realidade, sem ofender, sem estarrecer, sem
causar pânico. As vítimas encontradas,
vivas ou mortas eram gentilmente cobertas pelos grupos de resgate e delicadamente transportadas - quer
para as tendas do exército, que serviam de hospital, quer para as ambulâncias,
helicópteros, barcos, que os levariam a hospitais.
Análise da situação por especialistas, informações
incessantes a toda população pelos oficiais do governo e a noção bem
estabelecida de que “somos um só povo e um só país”.
Telefonei várias vezes aos templos por onde passei e recebi
telefonemas. Diziam-me do exagero das
notícias internacionais, da confiança nas soluções que seriam encontradas e
todos me pediram que não cancelasse nossa viagem em Julho próximo.
Aprendemos com essa tragédia
o que Buda ensinou há dois mil e quinhentos anos: a vida é
transitória, nada é seguro neste
mundo, tudo pode ser destruído em um
instante e reconstruído novamente.
Reafirmando a Lei da Causalidade podemos perceber como
tudo está interligado e que nós humanos
não somos e jamais seremos capazes de salvar a Terra. O planeta tem seu próprio movimento e
vida. Estamos na superfície, na
casquinha mais fina. Os movimentos das
placas tectônicas não tem a ver com sentimentos humanos, com divindades, vinganças
ou castigos. O que podemos fazer é
cuidar da pequena camada produtiva, da água, do solo e do ar que
respiramos. E isso já é uma tarefa e
tanto.
Aprendemos com o povo japonês que a solidariedade leva à
ordem, que a paciência leva à tranquilidade e que o sofrimento compartilhado
leva à reconstrução.
Esse exemplo de solidariedade, de bravura, dignidade, de
humildade, de respeito aos vivos e aos mortos ficará impresso em todos que
acompanharam as tragédias que se seguiram a 11 de março.
Minhas preces, meus respeitos, minha ternura e minha imensa
tristeza em testemunhar tanto sofrimento e tanta dor de um povo que aprendi a
amar e respeitar.
Haviam pessoas suas conhecidas na tragédia?, me perguntaram.
E só posso dizer : todas. Todas eram e
são pessoas de meu conhecimento. Com
elas aprendi a orar, a ter fé, paciência, persistência. Aprendi a respeitar meus ancestrais e a
linhagem de Budas.
Mãos em prece
Monja
Coen
belíssimo texto!obrigado.
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